Cereja do Bolo
Ah, essa coisa chamada envelhecer, tem um quê de solidão, que tantos desprezam, ou fogem dela, buscando se enturmar, participar de grupos às vezes aleatórios, se divertir de um jeito que nem sempre é tão agradável, fazer viagens nem sempre tão desejadas. Esse quê de solidão que o envelhecimento traz é justamente a cereja do bolo. O envelhecer combina deliciosamente com tardes reflexivas de um sábado ou de um domingo. Combina deliciosamente com o desempilhar de livros, com o aparar as plantas, com o ajeitar objetos. Combina com o biscoito assando no forno e com a fumaça da água do café sendo coado, enquanto pensamos. Os pensamentos se tornam mais apurados com o passar do tempo. Selecionamos o que queremos aprender e desprezamos muitos desnecessários aprendizados. Ignoramos certas falas, espreguiçamos diante da sensibilidade excessiva do mundo, que se contorce em dores inexistentes.
Essa coisa chamada envelhecer tem um quê de solidão, da qual não há como fugir, se desejamos ser honestos conosco mesmos. E esse quê de solidão traz um pouco de charme ao processo de suportar o tempo que passa, pois permite o verdadeiro amadurecimento e promove a sabedoria. Certos discernimentos só são alcançados em momentos solitários. Não há mais a pressa em compartilhar acontecimentos, nem dores, nem vitórias. Há uma calma mansa, calada, que se reflete muito mais no olhar. Este também se torna cada vez mais apurado, mais astuto, mais sincero. Quando se envelhece, os olhos falam cada vez mais a verdade. E, quando mesas são postas, a verdade é a primeira a ser colocada sobre a mesa. E, cada vez, se seleciona mais, quem ocupará os devidos lugares.
Esse quê de solidão jamais fecha as portas para os sempre benvindos, pelo contrário, portas e braços sempre abertos são o que caracteriza o verdadeiro envelhecer, pleno de aconchego, de conselhos, de aprendizado. Esse quê de solidão permite a contemplação da beleza, o aproximar de Deus, o encontro com os próximos desejos. Menos importância é dada aos comportamentos alheios, mais rapidamente a alma se cicatriza das feridas, mais depressa o processo de seguir em frente se instala. Esse quê de solidão valoriza a boa companhia, o amor verdadeiro, a amizade sincera, a mão que se estende, o abraço que acolhe, conforta e esquenta, tanto o corpo quanto o coração.
Há que se ressaltar que esse quê de solidão não tem gosto de desamparo, nem de abandono, muito menos de desencantamento. Pelo contrário, ele é totalmente revestido do encanto e do deslumbre de se enxergar o processo da vida, as fases pelas quais passamos, traz a compreensão do propósito do existir, o gosto bom de se bem viver. Ele é revestido do encorajamento de perceber o que realmente é valioso, e nos presenteia com a coragem de se desvencilhar das tralhas, o que nos coroa de bênçãos.
Esse quê de solidão é a cereja do bolo.