Quando um dia
Quando eu estiver na quarta idade, não tenham a ideia de me poupar, que isto jamais passe por suas cabeças. Não escondam de mim suas mazelas e dificuldades, tenho experiência de vida suficiente para saber que possam estar em sofrimento. A ignorância me traria mais dor do que que o conhecimento da adversidade. Se eu não puder ajudar concretamente, posso dedilhar meus dedos nas contas de um rosário, ou balbuciar minhas orações em direção a Deus. Não serei inútil.
Quando eu estiver na quarta idade, se impossibilitada de desligar alguma televisão ou outro ruído que me perturbe, o façam por mim. Nunca gostei de TV e sou amante do silêncio. Não se esqueçam jamais disso. Não permitam que alguém me infantilize, com suas falas, com seu jeito de lidar comigo. Lutei para ser uma senhora sábia e respeitada, lembrem-se disso. Se eu estiver descoberta, de forma indevida mostrando alguma parte do meu corpo, se recordem que ele é templo sagrado, precisa ser respeitado, coberto, zelado. Não quero exposições. Não cochichem perto de mim, sou desconfiada. Nem falem alto demais, detesto barulho.
Quando eu estiver na quarta idade, me levem para passear, me convidem para viagens, me contem seus segredos, seus planos, seus sonhos. Já não terei mais a ansiedade que tenho hoje, aliás, ela tem diminuído com o passar dos anos. Lembrem-se de tudo o que gosto, da disciplina, dos livros, da boa música, da poesia. Respeitem o meu sono ou a ausência dele. Não me critiquem, mas não deixem que eu caia em contradições ridículas ou me torne inadequada. Lembrem-se de me chamar num cantinho da casa e aí conversem comigo. Enquanto minha cabeça funcionar bem, lutem pela minha saúde, invistam em todos os procedimentos, mas se ela falhar, respeitem o fim que se aproxima. Não quero alimentar por sondas nem por gastrostomia. Quero morrer de pé e com dignidade encarar a morte, seja ela um desafio ou um abraço.
Quando eu estiver na quarta idade, não se aborreçam com minhas vaidades, nem com minhas risadas, dancem comigo, me ajudem a vivenciar minhas ilusões. Acompanhei muitas pessoas bem próximas em seus envelheceres, cada uma com suas peculiaridades. Conheço bem o processo. Tentarei aliviar as dificuldades para vocês, mas tenho a humildade de reconhecer que não serei capaz de superar tudo, portanto, paciência e amor sejam seus aliados, quando eu estiver na quarta idade.
Ah, quase me esqueci, lembrem-se que sinto saudade. Cartas, bilhetes, telefonemas, vídeos farão meus olhos brilharem de alegria. E trarão paz ao meu coração.